Ainda me lembro do som dos chocalhos e do balido dos
rebanhos.
O sino da igreja matriz a chamar para a missa, a tocar
matinas e trindades, a clamar incêndios, a carpir os mortos.
Um punhado de devotas num vai e vem de igreja em igreja a
orar a Deus, a pedir aos santos, a implorar milagres.
De saber quem são os padres que por ali pregam em terra de
incréus apegados ao destino, a despeito do reino dos Céus.
As mulheres com os cântaros à ilharga ou à cabeça na volta de
acarretar água da fonte, a lavar a roupa no tanque ou nas ribeiras e nós a espreita-las
por detrás de muros ou das silvas a mirar-lhes as pernas.
Em cada rua, as pedras da calçada onde descobrimos novos
carreirinhos de ervas e de formigas.
O bafo do vinho que saia das tabernas.
A noite de troça dos rapazes da cidade que levávamos a caçar
gambozinos, munidos de lanternas e depois corríamo-los à pedrada.
O cheiro a melancia que vinha da terra molhada às primeiras
águas.
O cair da noite, no Inverno, a imensa luz que saia das
mercearias, na escuridão da noite e na solidão das casas, no deserto das ruas,
molhados até a chuva fria nos repassar os ossos e a alma.
Nós a participar na catequese, assistir à missa do galo, a
dispor as figurinhas do presépio da igreja e de nossas casas, a brincar na
sacristia com os santos para restauro, como se estar ali fizesse parte do
mistério.
A alvorada e algazarra dos ranchos de abalada para os campos a
iludir o frio ou o cansaço que depois de mais de 10 ou 12h de trabalho
disfarçavam com as suas cantigas.
O chegar da notícia de alguém que se afogou na ribeira e o
sino não para de tocar.
As caçadas às lebres, aos coelhos, às perdizes, muitas vezes
à espingarda ao pau com bons cães galgos e perdigueiros.
As horas que nunca mais passavam vendo cair a chuva, numa
moenga em tarde de morrinha.
Recordo o carnaval trapalhão em assaltávamos as casa da moças
acenavam aos homens com bonecos de trapos e farinheiras em jeito de afronta e
desafio.
Os bailes das sortes e da bola ao toque das concertinas.
O pai com um olho no rapaz e a mãe de guarda à rapariga.
Há cheia na ribeira, as águas galgavam as pontes, arrastando
homens, cabanas haveres e o gado e nós acompanhando as águas apanhando laranjas
para matar a fome.
À noite nós a ouvir-mos - vamos meninos, são horas de ir para a cama, ainda o sol não
se tinha posto.
E a nossa mãe a fazer bolos na mesa da cozinha para festa de
Nata, tortas, broas de milho, cavacas, pão de ló, nogados, azevias, tibornas,
sonhos, borrachos, eu e os meus irmão a lamber os tachos antes de lavar os
tabuleiros de lata apolvilhados de farinha com os bolos, por cozer ao forno.
Os guinchos dos porquinhos que muitas vezes se criava no
quintal e cujo destino estava marcado.
A azáfama das mulheres sentadas nos mochos, frente a vastos
alguidares, no fabrico dos enchidos.
As cegonhas a anunciar a primavera no fazer dos ninhos na
proa das torres das igrejas e das ruínas dos conventos.
Na esplanada do clube lá da terra, os senhores da aldeia,
recostados nas cadeiras de vime, em conversas brejeiras de fazer corar um
santo.
As burricadas ou piqueniques num ar festivo era quase um
milagre.
As andorinhas no branco e preto das vestes de gala fazendo os
ninhos mesmo por cima das cabeças das pessoas.
E nós com a joaninha nas mãos a dizer: Joaninha voa, voa até Lisboa… e não é que ela voava mesmo.
Na pascoa, recordo a procissão do Senhor dos Passos, parada
na praça, e o padre a pregar ante as imagens de Cristo e da Virgem Maria, a
banda a tocar, as mulheres maduras em lágrimas lavadas e nós, impacientes,
vestindo a opa roxas ou branca.
Aquele despertar de adolescente sempre malandro olhando as
raparigas para lhes pregar partidas.
Tempo em que desencantávamos os grilos das suas talocas com
uma palhinha. Arrancando as asas aos gafanhotos e moscas, atando uma linha às
patas dos escaravelhos malcheirosos correndo atras deles quando voavam.
Recordo os morcegos a voar na noite de latibós e lobisomens.
Já no verão a horta cheinha de uvas e nós saltando os muros
e cercas para apanhar um cachos delas.
O sol chegava ao 40º grau por vezes 42º graus, era a hora da
sesta e muitas da chegada dos corredores de bicicletas, em que alguns morriam
na estrada entre algarve e Alentejo.
Os homens sem trabalho sentados no chão das praças que riem
param matar o tempo, dando piadas ou contando anedotas.
Recordo os concertos dos grilos e das cigarras, dos pardais
das rãs e dos sapos.
As horas que não passam e ainda nós não sabíamos que a vida e
morte nos esperam.
Os banhos na ribeira do Xarrama ou do Degebe, a caça aos
ninhos, as pedradas nos vidros e nas cabeças.
O jogo do berlinde, da pata, do virar boneco, das caricas, do
botão do pião.
Que saudades dos bêbados aos domingos a falar sozinhos,
espantalhos que caminham sozinhos nas ruas numa dança de parede a parede,
metendo-se às vezes em sarilhos.
Que saudades das mulheres sentadas às portas das casas a
apanhar o fresco da noite, olhando as
estrelas enquanto os filhos cantavam.
A debulha nos campos com os homens a comer a açordinha e o
gaspacho, as grossas e enormes rodelas de pão com chouriço ou toucinho,
transportados num tarro, num trago de vinho, enrolando o seu tabaco em papel e
o passam pelos lábios molhados para obter um malfeito cigarro.
Os cães à solta pelas ruas a ladrar ao despique não deixando
dormir ninguém.
Recordo todo o ritual da lavra da monda das colheitas da
azeitona, da ceifa da vindima, apanha da cortiça.
Recordo ainda o poço onde alguém se afogou no desejo de que o
seu destino estava cumprido.
O canto dos galos a dobrar o silêncio a anunciar um novo dia.
A festa das desfolhadas em noites calorosas nas eiras.
O frio que se sente na alma quando se ouve falar de gente que
se deita a afogar na ribeira ou na nora ou se enforca na trave de um palheiro.
Os carros de bois, de burros, muitos deles conduzidos por
ciganos, machos ou parelhas de mulas.
O receio que sentíamos quando se falava em quadrilhas de
ladrões, pilhado galinhas, coelhos e às vezes os haveres.
O teatro ao ar livre em caixotes de sabão azul e branco.
Agora muito mudou. As pessoas de então partiram de vez e é quanto
baste para mover o tempo de quando eu era criança, adolescente ou já adulto.
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