O mais paradoxal nisto é que a praxe académica há muito que saiu dos muros das instituições de ensino superior. Em Évora, o espectáculo que estes senhores nos oferecem é degradante: préstitos sujos, lambuzados e lúgubres de caloiros cansados e amarrados uns aos outros, ingestão forçada de comeres e beberes inomináveis, a lama, o banho forçado em locais impróprios, a simulação de actos sexuais, a abjecção do tratamento desigual; em suma, o apelo aos mais bárbaros e animalescos instintos do ser humano.
Não me venham dizer que os caloiros que participam neste tipo de actividades o fazem voluntariamente. As represálias a que seriam sujeitos na vida académica futura se resistissem, a discriminação imposta por lógicas grupais implacáveis, o dedo apontado, como um cutelo, ao desertor indesejável são usados com armas de coacção em massa, perpetuando as práticas. E até a suprema glória de um dia, investidos na pele de veteranos, vingarem nos caloiros futuros as agruras sofridas no 1º ano, é um pensamento desviante, de uma injustiça atroz, imposta pelo clima que se cria. A vingança será infligida aos inocentes de serviço nunca aos autores das sevícias do presente.
E o problema não está (como muitos sustentam) nos excessos que alguns cometem nestes momentos. A praxe é, ela própria, desumana e violenta por natureza. A sua estrutura (com elementos fascizantes, oligárquicos e militares) parte de um conceito de casta, detentora de poder incontestado junto dos novos estudantes.
Só assim se justifica, por exemplo em Évora, o tratamento despeitado dos novos alunos, reduzindo-os formalmente à condição de animais, a obrigação de olhar para baixo e não nos olhos dos veteranos, o tratamento por você, a obediência cega a qualquer ordem por mais ridícula que seja. Ora, desde Voltaire sabemos que qualquer poder, para mais auto-proclamado, sem limites nem controlo, conduz necessariamente ao excesso, sobretudo quando envolto no segredo partilhado, no silêncio imposto e na cortina diáfana da impunidade.
A praxe é incompatível com uma sociedade livre e democrática, com o respeito pela livre escolha de cada um e constitui um trilho na direcção de uma sociedade fascista.
E a intolerância destes pequenos poderes em relação a tudo os que os possa pôr em causa chega a ser arrepiante, sobretudo pela semelhança que exibe com os poderes totalitários do Mundo. É comum os assuntos directamente relacionados com as praxes serem os que mais motivam os alunos (e às vezes os únicos) nos órgãos em que têm assento em algumas instituições, quando há temas muito mais importantes para as instituições e para os próprios estudantes.
O filme “Rasganço” de Raquel Freire foi, há alguns anos, alvo de censura na academia de Coimbra. Os alunos da Universidade Lusófona responsáveis pelas praxes terão feito um pacto de silêncio para que os acontecimentos do Meco não prejudicassem as suas actividades predilectas. Estes são exemplos preocupantes de inversão de valores, como se a instituição da praxe fosse mais importante do que a própria vida.
O argumento de que a praxe é uma forma de integração dos novos alunos no ambiente académico também não colhe. A ser assim, a praxe seria uma espécie de preço a pagar para uma integração plena, como se a solidariedade, a amizade e o companheirismo estivessem à venda.
Custa a crer que os mentores e líderes das praxes académicas sejam tão limitados, quer moral quer intelectualmente, que não sejam capazes de integrar sem humilhar, ajudar sem destratar, conviver abdicando de uma relação de poder imposta, de que aparentemente necessitam, quiçá para abafar alguma frustração que talvez Freud explique.
Tais práticas são a antítese do que deve ser uma instituição universitária, aberta ao Mundo, pugnando pela liberdade de pensamento e de criação, instigando nos seus alunos o espírito crítico e os princípios basilares de uma cultura humanista: o respeito pelo ser humano nas suas várias dimensões, a tolerância, a solidariedade e a noção essencial de que todos os homens e mulheres, sendo diferentes na miríade das suas características, devem ser iguais no direito à sua dignidade.
E neste pressuposto, rituais iniciáticos, típicos de sociedades secretas, não fazem qualquer sentido, até pela banalização (no bom sentido) da condição de estudante universitário que a democratização do ensino trouxe.
O que aconteceu na noite do dia 15 de Dezembro na Praia do Meco não sabemos. Sabemos o que se passa no início de todos os anos lectivos nas instituições de ensino superior em Portugal. E ainda que possa ser conveniente para alguns o treino de estudantes universitários para obedecer cegamente a ordens superiores, não me parece que, enquanto sociedade, devamos ir por aí. Há que fazer algo e depressa!
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